SAL: um pouco de sua história e algumas curiosidades

04-12-2010 16:30

   A utilização do sal pela humanidade é tão antiga quanto a própria humanidade. Sal é o termo químico para a substância produzida pela reação de um ácido com uma base. Quando o sódio, um metal instável que pode inflamar-se subitamente, reage com o conhecido cloro, gás cuja toxicidade pode ser letal, o resultado é o cloreto de sódio (NaCl), alimento básico proveniente da única família de rochas que os seres humanos comem. O cloreto é essencial para a digestão e na respiração dos seres humanos que, quando adultos, chegam a conter cerca de 250 gramas de sal em seu organismo, quantidade suficiente para encher três ou quatro saleiros.

            O sal era, até os tempos modernos, fundamental para a conservação dos alimentos. Essa função do sal era tão conhecida que gerou várias relações metafóricas para o seu uso. Os antigos hebreus consideravam o sal o símbolo da eterna aliança de Deus com Israel. Nas sextas-feiras à noite, os judeus mergulham o pão do sabá em sal. No judaísmo, o pão simboliza o alimento, que é uma dádiva de Deus, e mergulhar o pão no sal é uma forma de preservá-lo – de manter o pacto entre Deus e seu povo. Tanto no islã como no judaísmo, o sal sela as transações por ser imutável. No cristianismo, o sal é associado não só com a longevidade e a permanência, mas também, por extensão, com a verdade e a sabedoria. A Igreja Católica ministra não apenas água benta mas também o sal sagrado, sal sapientia, o sal da sabedoria.

            Salgar o chão é condená-lo à improdutividade. Os espíritos malignos detestam sal. No catimbó o sal é poderoso, indispensável para “o trabalho às esquerdas”, para o mal. Judeus e muçulmanos acreditam que o sal protege contra o mau-olhado. O sal é uma substância forte e às vezes perigosa, que precisa ser manipulada com cuidado. A etiqueta europeia medieval dava grande atenção ao modo pelo qual se tocava o sal à mesa – com a ponta de uma faca, jamais com a mão. Derramar sal na mesa é mau agouro, que Leonardo da Vinci não esqueceu na Ceia, pondo o saleiro entornado diante de Judas.

A Santa Ceia. Leonardo da Vinci. 1498. Mixed technique, 460 x 880 cm. Convent of Santa Maria delle Grazie, Milan

            Antigas civilizações conheceram o sal, dos babilônicos aos egípcios, dos persas aos chineses. Nos tempos bíblicos, a principal fonte da substância estava na região do mar Morto. Um dos motivos que empurraram os romanos à conquista da Palestina, onde julgaram e crucificaram Jesus, foram as salinas do mar Morto. Não por acaso, a palavra salário deriva de sal, que os soldados de César recebiam em porções, como pagamento do trabalho. Ainda hoje carrega vestígios do conceito antigo. “Preço salgado” é o mesmo que alto. Em busca do produto, os bárbaros conquistaram o Império Romano, pois criavam animais e necessitavam dele para conservar a carne. Os cristãos interpretaram suas invasões como “flagelo de Deus”, ou seja, como castigo pela degeneração moral da época. Na prática, porém, os bárbaros lançaram as bases da civilização medieval e dos futuros Estados europeus. Até a Idade Média, o sal era utilizado em tudo. Acrescentavam-no até mesmo ao vinho e à cerveja. No século XIX, o corpo de São Marcos foi retirado de seu túmulo em Alexandria, onde morreu, e transportado a Veneza, cidade da qual é patrono, escondido num carregamento de sal.

 

Obra de joalheria, o saleiro utilizado em banquetes nas cortes europeias modernas.

            Vários governos monopolizaram o comércio de sal, objetivando engordar os cofres de seus Estados. Alguns historiadores consideram que o sal, ou melhor, o imposto do sal na França foi um dos motivos que geraram a Revolução Francesa. De todos os impostos que o Terceiro Estado devia ao clero e ao rei, o que mais o desagradava era o imposto do sal, conhecido como gabela. Sendo o sal um produto básico, usado de maneira mais ou menos igual por ricos e pobres, a monarquia francesa estabeleceu que o imposto fosse por cabeça. A taxa era igual, cobrada dos camponeses pobres da mesma maneira que dos ricos aristocratas. Com a gabela, o sal que era um produto comum, parecia raro. A taxação encarecia-o em proveito da Coroa, despertando ainda mais ódio em todos.

            Na Índia, Mohandas Karamchand Gandhi, mais conhecido como mahatma Gandhi (a grande alma vestida em trajes de mendigo), operou uma revolução baseada na desobediência civil. Contra a lei do sal imposta pelos britânicos, Gandhi liderou milhares de indianos a colherem sal pelas praias. Na Itália, até o ano de 1974 o comércio do sal era monopólio do Estado. Ainda hoje é possível ler tabuletas com as palavras Sali e Tabacchi em lojas das principais cidades italianas, onde o sal era vendido juntamente com o cigarro, outro privilégio estatal.

 

Em 6 de abril de 1930 Gandhi publicamente violou a lei do sal britânica ao apanhar um pedaço de crosta de sal em Dandi, na costa da península de Guzerate.

            O sal era comercializado a preço de ouro, virou pagamento de soldados, serviu aos cofres públicos por meio de impostos e gerou algumas guerras. Até na história do Brasil o sal aparece: a sentença de morte de Tiradentes dizia que sua casa em Vila Rica deveria ser arrasada e salgada. Aliás, na Antiguidade os romanos fizeram a mesma coisa com Cartago. Enfim, o sal, grosso ou refinado, de aipo ou defumado, com iodo ou marinho, fleur de sel ou de Guérande, sempre esteve presente na história da humanidade.

    

O sal nosso de cada dia.

 

Texto adaptado das seguintes fontes:

ALGRANTI, Márcia. Pequeno dicionário da gula. Rio de Janeiro: Record, 2004.

CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global, 2001.

FRANCO, Ariovaldo. De caçador a gourmet: uma história da gastronomia. São Paulo: Editora SENAC, 2001.

KOCH, Ivan. Vocabulário A&B de alimentismo. Curitiba: A. Koch, 2002.

KURLANSKY, Mark. Sal: uma história do mundo. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2004.

STRONG, Roy. Banquete: uma história ilustrada da culinária dos costumes e da fartura à mesa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

WOLKE, Robert L. O que Einstein disse a seu cozinheiro: a ciência na cozinha. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.