"A ÁGUIA E A CORUJA"

08-12-2010 11:46

O RETRATO NÃO CORRESPONDE AO FATO

"Pais corujas", convencidos da superioridade e excelência da sua prole, podem exaltar fictícias qualidades, no entanto, a criança em geral é muito sensível e perceberá imediatamente um elogio que soa falso." Hammed

A ÁGUIA E A CORUJA

Depois de muita briga, a águia e a coruja decidiram pôr fim à sua guerra. Um abraço selou a nova amizade e prometeram ambas, com sinceridade, não devorar os filhotes das rivais. Disse a coruja:

- Basta de luta. O mundo é tão grande! Não existe maior tolice do que andarmos a comer as crias uma da outra.

- Perfeitamente. Também eu não quero outra coisa - respondeu a águia.

- Nesse caso combinemos isto: de agora em diante não comerás nunca os meus filhotes.

- Muito bem. Mas como vou distinguir os teus filhotes? Descreve-me tais quais eles são, que, juro, haverei de poupá-los.

Ante tal compromisso, a coruja, satisfeita, disse assim:

- Meus filhos são mesmo uma graça, cada qual mais bonito e de talhe bem-feito. A penugem que ostentam é fofa e vistosa; sua voz, doce e suave. Se os achares, haverás de ver que mimos tão gentis não merecem morrer.

Feito o pacto, saiu cada qual para um lado. A coruja, em busca de alimento, voou para um bosque afastado; já a águia, com atrevimento
(porquanto as águias não têm medo), entrou nas fendas de um rochedo, e ali logo encontrou uns bichos esquisitos, verdadeiros monstrinhos, gemendo tristonhos, penugem horrível, emitindo gritos de som assustador.

- Esses bichos medonhos, provavelmente da coruja não serão. Assim, não há problemas: vou comê-los agora.

E ali se fartou abundantemente.

Um mau pressentimento tomou conta da coruja e a trouxe de volta ao ninho.

Chegando, ela avistou, numa aflição extrema, os restos da chacina e chorou amargamente. Protestava aos gritos clamando aos céus por castigo e foi ajustar contas com a rainha das aves.

- Quê? - disse esta, admirada. Eram teus filhos aqueles monstrenguinhos? Pois, olha, não se pareciam nada com a imagem que deles me fizeste. Tu pintaste um retrato que não corresponde, de fato, a filhotes de coruja; assim, não atribuas culpas a outrem.

Se as há, são só tuas!"

O RETRATO QUE NÃO CORRESPONDE AO FATO

Comumente, grande número de pais exibe condutas aparentemente qualificadas como manifestações de amor e carinho, mas que, na realidade, são comportamentos destrutivos do desenvolvimento social e emocional dos filhos. Essa atitude é denominada superproteção.

Encontramos, por parte desses adultos, uma "dominação asfixiante" e, ao mesmo tempo, um comportamento em que falta firmeza ou controle, abarrotado de agrados e/ou mimos; pretendem impor uma submissão infantil por meio de verdadeiros subornos, desprezando as reais necessidades psicológicas da criança.

Os pais superprotetores resguardam excessivamente e afastam as criaturas, desde a mais tenra idade, de todos os supostos perigos, impossibilitando que elas desenvolvam por conta própria sua defesa existencial.

Colocam-se em guarda para defender sua prole das experiências evolutivas, acreditando que sejam tribulações ou padecimentos desnecessários, e, com essa atitude nociva, impedem que as vivências naturais possam promover uma série de aprendizados. São permissivos a qualquer teimosia ou capricho. Impossibilitados de negar seja o que for, alegam que os filhos exercem um fascínio, um domínio afetivo ao qual não podem resistir.

Quando uma mãe aponta, sistematicamente, os defeitos de educação no filho da vizinha, pode haver aí um "ponto cego", ou seja, ela ignora ou não consegue ver as falhas educacionais do próprio filho e projeta seu desconforto materno para algo ou alguém.

Diz a "mãe coruja": - "Meus filhos são mesmo uma graça, cada qual mais bonito e de talhe bem-feito. A penugem que ostentam é fofa e vistosa; sua voz, doce e suave. Se os achares, haverás de ver que mimos tão gentis não merecem morrer.

É comum encontrar na sociedade homens que, tal qual o mocho, cobrem os filhos de elogios, de mimos e de exagerada afetividade. Futuramente, essas crianças serão criaturas frágeis, inseguras e infantilizadas. Enfim, eles as conduzem à "morte como indivíduos" - "esses bichos medonhos, provavelmente da coruja não serão. Assim, não há problemas: vou comê-los agora. "

Muitos pais sentem necessidade ilimitada de satisfazer todos os desejos dos filhos, sempre desculpando o desmazelo, descaso, grosseria e indisciplina, como se fosse uma maneira de resgatar sua dívida de afeto para com eles.

Eis aqui os motivos mais freqüentes que podem levar um adulto a ter comportamentos superprotetores:

- pais que foram rejeitados na infância podem dar uma proteção acima do normal, educando os filhos de maneira inversa, como uma forma de autocompensação;

- defeitos congênitos ou enfermidade grave da criança;

- filhos únicos ou "temporões";

- filhos naturais ou adotivos;

- a morte de um irmão;

- incompatibilidade conjugal ou frustrações sexuais dos pais que projetam seus conflitos na criança através de desmedida afabilidade; e outras tantas coisas.

Seguem algumas atitudes básicas que nos permitem reconhecer o adulto superprotetor:

- relação pegajosa e maçante com a criança, sempre ao lado dela, vigiando-a incansavelmente, controlando-lhe todos os movimentos com o olhar;

- afirmação metódica aos outros de que o filho não se afasta deles nem por um instante sequer, quando, na verdade, é o reverso: são os pais que não conseguem se afastar dele;

- criação de uma atmosfera de bloqueio ao amadurecimento da criança, revelada pelo tratamento inadequado, como se ela fosse mais infantil do que na verdade é;

- esforço sobrenatural para que os filhos não saiam do ambiente familiar, impedindo-os de se desenvolverem socialmente e sendo responsáveis, conscientemente ou não, pela incapacidade que os mesmos terão para se auto governar e pela eterna dependência emocional;

- pensamentos catastróficos que geram uma submissão neurótica nos filhos, deixando-os inseguros e medrosos além dos limites do aceitável;

- conceitos de culpabilidade, servilismo e vitimização, transmitidos por meio de frases do tipo: "Quase morri em seu parto"; "Sacrifiquei toda minha juventude", "Deveria ser grato, porque me mato por você"; "Passei muitas noites em claro", "Sempre tudo primeiro em seu favor".

As crianças precisam de elogios verdadeiros e não de supervalorização; necessitam de afetos reais, e nunca de carinhos excessivamente pegajosos. O verdadeiro amor não é exatamente "afeto viscoso".

Na verdade, o adulto pode estar projetando nas crianças seus medos e receios, principalmente o maior deles: a perda do afeto dos entes queridos. E "perder" é uma palavra corriqueira no vocabulário familiar, porque sugere "ficar sem a posse de alguém". E os mais apegados seguram o outro, colocando-o numa redoma: protegem desesperadamente os filhos para não terem que viver o próprio medo.

CONCEITOS-CHAVE

A - PONTO CEGO

A definição físico-oftálmica considera o ponto cego como parte do olho (a retina) de onde emergem o nervo ótico e os vasos sanguíneos que ligam o olho ao cérebro. Esse ponto, no fundo do globo ocular, é insensível à luz, pois nele não há receptores visuais. No entanto, como nós temos dois olhos, um compensa o ponto cego do outro. Para além do olhar físico, o ponto cego é uma "mancha" localizada no ego, cuja função é a de camuflar um conflito psíquico. Algo como: "não devo olhar o que é interpretado como perigoso, não devo perceber o proibido, não devo entrar em contato com algo que possa me comprometer ou que me coloque em contradição, ou ainda que me obrigue ao confronto comigo mesmo" .

B - AFETO

Toda criança necessita de afeto. Com isso não estamos nos referindo às atitudes dengosas e "açucaradas", a beijinhos e abraços descompromissados que os pais adotam em relação aos filhos uma vez ou outra. Para estes, é imperioso sinceridade, aceitação, amizade e respeito. Afeto real não é o tipo do gesto que hoje é ardorosamente apaixonado, para amanhã ser indiferente e estúpido. A criança sente perfeitamente, quem sabe até de maneira inconsciente, quando seus pais, apesar dos meigos beijos e abraços, não a consideram como elemento ativo e participativo no seio do ambiente familiar. Esse paradoxo dos afetos pode levar pais e filhos aos piores conflitos domésticos. É preciso que os adultos se afeiçoem ao modo de ser das crianças, aceitando-as com ternura, naturalidade, espontaneidade, sem fantasias de grandeza, para que eles possam ver um dia, para seu grande contentamento e surpresa, como seus filhos corresponderam e ultrapassaram todas as expectativas imaginadas pela família. Para a criança, um dos maiores bens é o afeto verdadeiro e a compreensão que recebe dos pais, com os quais sabe que poderá ter como certa a ajuda e/ou apoio para sempre.

C - ELOGIOS

Não apenas para os adultos e para os adolescentes, como também para as crianças, o elogio funciona como uma necessidade psicológica e um estímulo de valor incalculável. Trata-se de uma das mais poderosas motivações, pois incita de modo essencial o desenvolvimento da personalidade do ser em evolução. Fazer um elogio à criança é fator que gera entusiasmo, segurança, progresso, confiança em si mesmo e, em verdade, custa menos do que qualquer divertimento, jogo ou brinquedo, por mais baratos que sejam: custa somente disponibilidade de tempo e boa vontade. Contudo, o elogio não deve ser excessivo. Ele deve corresponder à realidade dos fatos, porque a criança possui um "radar abrangente" que percebe claramente a insinceridade e hipocrisia dos adultos. Pais "corujas", convencidos da superioridade e excelência da sua prole, podem exaltar fictícias qualidades; no entanto, a criança em geral é muito sensível e perceberá imediatamente um elogio que soa falso.

MORAL DA HISTÓRIA:

Vivemos numa sociedade acostumada a todo tipo de "amortecedores emocionais". Somos seduzidos por uma série de facilidades que têm por objetivo nos resguardar, de forma incondicional, dos golpes da vida. Pais que se colocam na posição de atenuadores desfavorecem o desenvolvimento emocional, intelectual e espiritual dos filhos; criam indivíduos amedrontados, inseguros, com auto-estima corrompida facilmente manipuláveis pelo meio social. Como os filhos aprendem que, sozinhos, não podem resolver problemas e dificuldades, desenvolvem gradativamente uma necessidade de proteção, amparo e apoio, submetendo-se à vontade de outrem. Com uma agravante: por não conhecerem suas potencialidades, têm dificuldades para comandar a própria vida, visto que lhes falta a experiência negada pela superproteção. Para retrato de filho, que ninguém acredite em pai pintor. Já diz o ditado: "Quem ama o feio, bonito lhe parece."

REFLEXÕES SOBRE ESTA FÁBULA E O EVANGELHO:

"Quantos pais são infelizes com seus filhos porque não combateram suas más tendências no princípio! Por fraqueza ou indiferença, deixaram que se desenvolvessem neles os germes do orgulho, do egoísmo e da tola vaidade que secam o coração; depois, mais tarde, recolhendo o que semearam, se espantam e se afligem de sua falta de respeito e de sua ingratidão." (ESE, cap. 5, item 4.)

"Nisso aproximou-se a mãe dos filhos de Zebedeu com seus filhos e prostrou-se diante de Jesus para lhe fazer uma súplica. Perguntou-lhe ele: Que quereis? Ela respondeu: Ordena que estes meus dois filhos se sentem no teu Reino, um à tua direita e outro à tua esquerda. Jesus disse: Não sabeis o que pedis ( ... )". (Mateus, 20:20 a 22.)

"A GRACIOSIDADE ESTÁ PARA O CORPO ASSIM COMO O BOM SENSO ESTÁ PARA O ESPÍRITO." - LA ROCHEFOUCAULD

HAMMED