Amor Divino

 


O que é o amor divino em termos físicos? Como ele se manifesta?
Esta e uma análise científica de um fenômeno místico

Por Aimé Michel


O amor divino produz efeitos físicos bem evidentes: hipertermia, taquicardia, dilatação do globo ocular, ruptura da pele em determinados pontos. Alguns desses sintomas podem ser explicados pela hipertireoidite, sugestão ou histeria. Mas ninguém é hipertireoidiano apenas por algumas horas e essa doença conduz a uma morte rápida. Ora, os santos e os místicos tiveram vida longa, saúde de ferro e atividade invejável. Por outro lado, se a sugestão pode explicar os casos de estigmatização, como explicar os fenômenos dos corpos luminosos, da levitação e dos jejuns prolongados por anos a fio?

Imagino o que você está pensando: o amor divino, que anacronismo! Entretanto, às portas do terceiro milênio, os místicos são mais numerosos e mais enigmáticos do que nunca. Aqueles que os estudam objetivamente, à luz dos conhecimentos modernos, suspeitam por vezes que eles absorvem ou criam energias secretas. No que são confirmados pela observação científica, como indicaremos a seguir. As crises místicas do padre Pio, o célebre capuchinho de Pietralcena, eram acompanhadas de tal elevação da temperatura que nenhum termômetro resistia: quebravam-se sob o impulso do mercúrio. Não se trata de febre, isto é, de um fenômeno determinado pela presença de um agente tóxico ou infeccioso. O exame clínico não revela nada mais do que esta elevação fantástica da temperatura com aceleração do pulso e da respiração.

São Filipe de Neri, fundador dos oratorianos, viveu oitenta anos sob os olhos da Itália cética e racional do século 16. "Ele sentia um tal calor na região do coração, narra Bacci, seu biógrafo, que ela se estendia às vezes pelo corpo inteiro. Apesar de sua idade, de sua magreza e de seu regime frugal, nos dias mais frios do inverno, era preciso abrir as janelas. Por vezes, o ardor queimava-lhe a garganta. O cardeal Crescenzi narra que, ao segurar em sua mão, ela queimava como se o santo sofresse de uma febre devorante . . ."

Como vimos, os dois centros deste ardor extraordinário eram o coração e a garganta. O padre Bacci informa ainda que "este fogo interno era tão forte que o santo desfalecia algumas vezes e uma síncope obrigava-o a se deitar na cama: permanecia às vezes acamado o dia inteiro, sem outra doença que a do amor divino. Certa vez sua garganta ficou tão queimada que ele passou mal durante vários dias".

No que se refere ao coração, centro tradicional das paixões do amor, podemos supor que o aquecimento tinha uma origem psicossomática. O coração do santo sofria o que o santo pensava que deveria sofrer. Trata-se de uma hipótese, bem entendido. Uma outra hipótese igualmente incerta é que o santo pensava fortemente na paixão do Cristo e em seu coração transpassado pela lança do soldado romano.


Por que o fogo na garganta?

Mais interessante é o caso da garganta. A garganta não é o símbolo de nenhum sentimento especial e não representa nenhum papel no drama da Redenção, tema exclusivo das meditações de Filipe. Mas é na garganta que se localiza a glândula tireóide, reguladora do metabolismo basal. Ora, o que significa a hipertermia, a aceleração do pulso (taquicardia), a respiração acelerada?

Vejamos o que diz o tratado do professor Harald Okkels sobre a glândula tireóide, à página 37:
"Um excesso de tireoxina (o hormônio se¬cretario pela tireóide) acelera todos os processos fisiológicos. Os sintomas principais são: aumento do metabolismo basal, palpitações e hiperexcitabilidade do sistema nervoso".
Em certos casos de hipertireoidite, o aumento do metabolismo pode chegar a 50 ou mesmo 80 por cento. O paciente emagrece rapidamente. Na forma mais grave da hipertireoidite (doença de Basedow), observa-se a saliência dos olhos, que permanecem extremamente brilhantes. Ora, como narra o padre Bacci, "por vezes, ao dizer o ofício, ou depois da missa, ou em algum outro exercício espiritual, faíscas saltavam dos seus olhos e do seu rosto, como se fossem labaredas". Este sintoma dos olhos brilhantes era acompanhado justamente de um excesso de calor na garganta e da hipertermia geral.

A partir de 1544, os sintomas tornaram-se paroxísticos. Em seus êxtases, o santo não se sustentava em pé. Atirava-se ao comprido no chão e, como alguém que procura se refrescar, descobria o peito para moderar a chama que o consumia. Tremia então convulsivamente, com palpitações intensas.

Estes dois últimos sintomas são acentuados igualmente por Okkels no seu estudo sobre a tireóide. Mas é preciso observar que todos estes sintomas são os mesmos da doença de Basedow que, se não for tratada, evolui irrevogável e rapidamente para a morte. Filipe os apresentou a partir de 1554. Estava então com 33 anos e só veio a falecer em 1595, aos oitenta anos, após levar uma vida incrivelmente ativa.

Santa Maria Madalena de Pazzi, mística do século 16, como Filipe de Neri, não podia vestir roupas de lã, nem nos dias mais frios do inverno. Segundo seu biógrafo, o padre Cepari: "Ao sentir uma grande chama no rosto, abanava-se com o leque, depois corria à fonte e bebia grandes goles de água gelada, molhava o rosto e os braços, e respingava água sobre o peito. Era tão grande a chama que ardia no seu peito que parecia consumi-la, mesmo exteriormente". Também neste caso, ardor insuportável na garganta e metabolismo excessivo.

Santa Catarina de Gênova era filha de Tiago Fieschi, vice-rei de Nápoles. Os 63 anos de sua vida foram observados por uma elite intelectual eminentemente crítica. Contemporânea de Maquiavel, viveu no mesmo ambiente social. Conhecemos por isso os episódios de sua vida com toda certeza e precisão e, sobretudo, os de sua morte. Convém lembrar, antes do mais, que também Catarina era sujeita a uma sede insaciável no momento de seus êxtases de amor divino, e tomava quantidades enormes de uma bebida preparada com água salgada e vinagre.

"Certo dia, lemos em sua biografia, ela sentiu-se queimar com uma tal intensidade que não conseguiu ficar na cama ... Era impossível tocar em sua pele por causa da dor aguda que sentia ao menor contato." Este estado atingiu o ponto extremo durante sua última doença em agosto e setembro de 1510. "Sua língua e seus lábios tornaram-se tão ressecados pelo calor extremo que ela não podia movê-los nem falar. Se alguém tocasse em um cabelo de sua cabeça, ou mesmo na beira da cama, ou nos lençóis, ela gritava como se fosse esfaqueada."

Esta hiperestesia, sintoma de um estado nervoso exacerbado, é interessante por dois mo¬tivos. Primeiro porque corresponde ao diagnóstico da hipertireoidite. E, segundo, porque fornece talvez uma explicação do mecanismo psicossomático que, partindo de um estado eminentemente espiritual — o amor divino — terminou pela aceleração fantástica dos processos fisiológicos que explicam a hipertermia. Antes de ver onde nos leva este caminho, citemos outros exemplos particularmente espantosos. Primeiro o da venerável Serafins di Dio, religiosa do Monte Carmelo de Capri, morta em 1699. Sua biografia, escrita pelos padres Sguillante e Pagani segundo os documentos do processo de beatificação, é rica em precisões de uma grande clareza.

As religiosas do convento disseram tê-la vis¬to, quando estava em oração, ou depois da comunhão, com o rosto brilhante como uma chama, os olhos resplandecentes. Se tocavam em Serafina, queimavam-se, mesmo no inverno, e inclusive depois de velha. Declararam tê-1a ouvido dizer muitas vezes que se sentia consumida por um fogo vivo e que seu sangue fervia.

Esta impressão de sangue que ferve é comum entre as pessoas que sofrem de hipertireoidite. Mas convém lembrar ainda uma vez que estas pessoas são sujeitas permanentemente a esta enfermidade. Serafina, como Catarina de Gênova, como Filipe de Neri, e muitos outros, sentia o sangue arder por um reflexo momentâneo da glândula tireóide, e este efeito, em vez de produzir uma perturbação física, parecia permitir ao organismo suportar uma provação misteriosa no limite das possibilidades humanas.

O caso de Serafina é notável pelo fato de ela haver um dia transposto este limite. Ela morreu, de fato, no paroxismo de um ardor ao mesmo tempo espiritual e físico. Como narraram seus biógrafos, "durante as 24 horas que se seguiram à sua morte, seu corpo conservou um tal calor, sobretudo na região do coração, que era possível aquecer a mão mantendo-a naquele ponto. Muitas freiras fizeram esta experiência. Na verdade, o calor foi sentido 33 horas depois da morte, embora num grau menor. Isto ocorreu em março, e o tempo estava frio. O corpo não perdeu completamente seu calor antes de ter sido aberto e retirado o coração".


O coração queima a mão do médico

O outro caso, ainda mais surpreendente, é o da dominicana Maria Villani, de Nápoles. A narrativa de sua vida parece ter sido escrita por um biógrafo do século 20 decidido a demonstrar que a glândula tireóide pode provocar as acelerações metabólicas mais inacreditáveis. Também esta religiosa tinha os olhos inflamados no momento dos êxtases. Também ela sentia a garganta arder. A ponto que chegava a beber vinte litros de água por dia. Ela morreu igualmente num excesso da paixão divina, queimando literalmente seu corpo enfraquecido de 86 anos. Isto antes da descoberta das glândulas endócrinas. Nove horas depois de sua morte, um médico decidiu operar-lhe o peito na altura do coração.

Após uma primeira incisão que provocou a exalação de uma fumaça de vapor, o médico julgou que o calor era forte demais para continuar a operação. Retomou a tarefa, porém, algum tempo depois, enfiou a mão na abertura para retirar o coração e não suportou o calor que lhe queimou a ponta dos dedos. Somente depois de várias tentativas conseguiu retirar o órgão. Dois outros operadores assistiram a esta incrível operação e deixaram por escrito um depoimento que foi conservado.

Um detalhe sobretudo deste documento chama a atenção do biólogo moderno: é a "cor negra e sombria" da pele observada pelos médicos, detalhe extravagante e desprovido de significação em 1670. A cor da pele deveria ser bem singular para chamar a atenção dos presentes. Três séculos mais tarde, este detalhe nos leva ainda a refletir. De fato, no tratado do professor Okkels, citado anteriormente, podemos ler, à página 38, que um dos sintomas da hipertireoidite é uma pigmentação anormal da pele ...

Poderíamos estender a lista dos sinais que apontam uma hiperatividade da tireóide no momento das exaltações do amor divino.


Todos os sintomas da hipertireoidite

Okkels menciona, por exemplo, a intolerân¬cia aos hidratos de carbono. Os documentos sobre este ponto são evidentemente bastante raros entre os místicos antigos, para os quais o açúcar era uma gulodice proibida pelos rigores da ascese. Mas um boletim médico, escrito no século passado pelo dr. Dei Cloche sobre a célebre estigmatizada Domenica Lazzari, esclarece de certa forma este assunto. Lemos ali que, sendo um dia persuadida pelo médico a colocar um torrão de açúcar na boca quando estava em jejum, a mística foi assaltada por uma crise que durou vinte minutos, com convulsões de vômito tão violentas que por pouco não morreu asfixiada. Outros sintomas mencionados antes: palpitações e taquicardias. Okkels menciona casos de hipertireoidite em que o paciente atingia 160 pulsações por minuto.

Mas um dos sinais mais "notáveis só é geral¬mente constatado no momento da autópsia: é a dilatação do coração. Este fato foi observado por Okkels e encontra-se em uma série de depoimentos redigidos na ocasião da morte de muitos místicos, entre os quais Filipe de Neri. Algumas pessoas observaram em Catarina de Gênova, ainda em vida, o deslocamento das costelas, como se fossem levantadas pela hipertrofia do órgão.

Deixemos de lado um sofisma divulgado nos últimos cinqüenta anos por certos racionalistas paradoxais que, temendo usar a razão, preferem negar os fenômenos sem um exame prévio. Para estes representantes do imobilismo científico, Felipe de Neri, Teresa de Ávila, João da Cruz, Maria Madalena de Pazzi e todos os outros místicos não passam de pobres dementes que merecem, quando muito, as duchas de água fria e o eletrochoque. Todos os fenômenos que apresentam, dizem eles, são o resultado da auto-sugestão, e não possuem por isto nenhum interesse, a não ser para os psiquiatras. Há alguma evidência neste raciocínio? E o "demente" que, por auto-sugestão, atinge um tal domínio de sua fisiologia que pode, unicamente pela força de certos movimentos espirituais, produzir descargas incríveis de tireoxina, partir os termômetros, acelerar seu pulso até 160, e talvez levantar-se acima do solo sem nenhum ponto de apoio, será que este "demente" merece realmente o internamento no hospício? Gostaria realmente de saber o meio de fazer todas estas coisas por "sugestão".


Complexo da crucificação

Se houver sugestão, não vejo por que os resultados obtidos seriam menos interessantes. Muito ao contrário, é bem possível que se poderia encontrar, além dos fenômenos aparentemente incompreensíveis, um início de explicação, ou pelo menos uma espécie de método experimental. Mas existem sinais que nos permitem reconhecer na fisiologia do amor divino os efeitos da sugestão? Sem dúvida alguma, e são tão freqüentes quanto os sintomas da hipertireoidite. Foram observados pela primeira vez por Thurston a respeito dos estigmas. Ao constatar a ausência de estigmas na Lenda Dourada durante os primeiros treze séculos do cristianismo, e a primeira manifestação no corpo de São Francisco de Assis, Thurston observou a multiplicação súbita do fenômeno a partir deste momentó. "Cheguei à conclusão, escreveu ele, de que o exemplo de São Francisco criou o que denominei o complexo da crucificação." E cita provas de sua descoberta.

A princípio, os estigmas apresentam-se regularmente, não sob o aspecto uniforme das chagas do Cristo como são descritas nos Evangelhos, mas sob o aspecto que é familiar ao indivíduo estigmatizado: assim, os estigmas de Gemma Galgâni reproduzem os de seu crucifixo. Os de Catarina Emmerich supõem uma cruz em Y, semelhante à cruz onde a mística alemã viu pela primeira vez a imagem do Cristo supliciado, em Cõsfeld.


Uma saúde de ferro

Não sabemos o que se passa na alma — ou na mente — do místico no estado de abras.amento.Vemos apenas o efeito exterior do ato misterioso que assalta todo o seu ser. E o que vemos excede deliberadamente as normas humanas comuns. Dizer que o místico é um anormal não tranqüiliza de forma alguma nosso conforto mental, porque não basta constatar, é preciso explicar. Não há dúvida que é anormal atingir, sem morrer, uma temperatura que o homem comum não pode tocar com a mão sem sentir uma impressão de queimadura.

Mas de que maneira esta temperatura é alcançada impunemente? Esta é a primeira questão, a menos importante. O verdadeiro problema é este: para que serve este esforço prodigioso do organismo? Alguns dirão que não serve para nada e que é apenas uma doença como outra qualquer. Ora, é aqui que devemos examinar com atenção a patologia aparente do amor divino.

Antes do mais, a hipertireoidite. O paralelismo é evidente, como vimos. Mas o episódio do embrasamento é realmente uma manifestação da hipertireoidite? Não! O abrasamento supera em violência a forma paroxística da hipertireoidite, que é a doença de Basedow. Ora, como observou Okkels, "a evolução da doença de Basedow conduz à morte".

Mas em vez de falecer em conseqüência de sua doença suposta, os místicos gozam de uma "saúde de ferro" e morrem geralmente em uma idade avançada, após terem desempenhado uma atividade fantástica. Fora isto, o descontrole glandular da hipertireoidite é sem remissão no sentido médico da palavra. Ninguém é hipertireoidiano durante algumas horas para voltar ao normal em seguida. O indivíduo é ou não é.



Um consumo fantástico de energia


Além disso, a doença de Basedow conduz o paciente a uma fase terminal em que, segundo Okkels, "ele apresenta um aspecto clínico lamentável". O doente sofre de desnutrição profunda e oferece o espetáculo de uma total decadência física e mental. Nada disso ocorre com o místico, que parece alimentar seu gênio na mesma fonte que deveria extingui-lo. Para termos uma prova disto, basta ler a obra de Santa Teresa de Ávila, tão admirável pelo seu vigor quanto pela sua lucidez.

A interpretação que se impõe portanto é a seguinte: a hipertireoidite da crise mística não é absolutamente uma causa, mas um meio. Em um certo momento, e para atingir alguma coisa cuja natureza real ignoramos totalmente, o místico tem necessidade de uma quantidade imensa de energia. E esta energia é obtida pela aceleração anormal dos
processos metabólicos, graças a um estímulo reflexo da tireóide.

Mas de que maneira este reflexo é acionado? A tireóide obedece certamente a mecanismos que são influenciados por nossas emoções, sobretudo por intermédio da glândula hipófise. Mas em um organismo normal não se observa nunca algo comparável às tempestades tireoidianas da vida mística. E então? A resposta nos é dada por um outro gênero de sintomas encontrados normalmente na vida dos místicos: a sugestibilidade. Esta sugestibilidade, confundida muitas vezes com a histeria, também não é uma causa. Seria antes o resultado obtido pela disciplina ascética e que teria por efeito essencial abandonar à ação da vida espiritual a chave do reflexo tireoidiano.



Excitação mental do gênio


Tentemos resumir agora nossa hipótese. Na origem do fenômeno místico encontramos a ascese, o esforço constante e impiedoso do ego, o controle total da vontade sobre as reações conscientes do corpo. Se o corpo aceitar este domínio (e isto explica por que nem todos os santos são místicos), esta condição começará a atuar sobre os automatismos orgânicos inconscientes, ou talvez a criar reflexos condicionados orgânicos em relação com os esforços exigidos. Se esta situação for muito longe, os sinais clínicos da sugestibilidade se tornarão cada vez mais evidentes, criando uma espécie de equívoco com a histeria.

Mas enquanto a histeria é uma perturbação, uma neurose, a sugestibilidade do místico é um método, ainda mesmo quando o indivíduo não tem consciência do seu mecanismo. Entre a sugestibilidade do místico, que submeteu certos mecanismos do seu corpo às exigências da vida espiritual, e a sugestibilidade do histérico, há exatamente a mesma diferença que entre a excitação mental do maníaco e a do gênio. Exteriormente, é provável que a última noite de Evariste Galois, quando anotou no papel os cálculos modernos da matemática, apresente todos os sintomas clínicos da crise de exaltação maníaca. Só que Galois sabia o que estava fazendo, e toda a diferença está nisso.



Fogo e luz


O místico sabe o que faz? Ele declara sua união com Deus, o que, reconheço, não significa nada na ordem dos fenômenos que estamos analisando. Renunciemos, pois, a saber, o que designa realmente esta palavra, Deus, e limitemos nossa pesquisa aos sintomas exteriores que permitem decidir se, de fato, algo diferente de tudo que conhecemos acompanha fisicamente este ato de amor divino em que o corpo do místico se consome. As grandes exaltações de amor de São Filipe de Neri principiaram em 1544 por um fenômeno luminoso que seus companheiros interpretaram como a "vinda do Espírito Santo sobre ele". De fato, algumas pessoas viram-no cercado por uma espécie de auréola luminosa. Foi então que, pela primeira vez, e no excesso do sofrimento que sentia na garganta e no coração, o santo se atirou ao chão, descobrindo o peito.

Um fato exatamente idêntico ocorreu com a venerável Rosa Maria Serio, priora do convento das carmelitas de Fasano, morta em 1725. Sua experiência mística principiou pelo mesmo fenômeno luminoso, uma auréola de fogo que desceu sobre ela. A monja perdeu os sentidos e, quando as outras a despiram, encontraram sua camisa queimada.

Poderíamos, naturalmente, recusar a autenticidade destas narrativas, e não tentarei provar sua veracidade histórica. Nestes casos, como em tudo que diz respeito à humanidade excepcional, há uma forma de ceticismo que é a,marca congênita de um certo tipo de mentalidade. Direi apenas que todos os depoimentos sobre a elevação fantástica da temperatura foram igualmente postos em dúvida pelos mesmos céticos, aos quais cabe explicar agora como estes mitômanos, que viveram há vários séculos atrás, puderam mostrar uma presciência tão grande dos sintomas da hipertireoidite.



O filme do doutor Protti


Alguns casos modernos de luminosidade corporal, que foram filmados e estudados por biólogos competentes, não despertaram o menor desejo de controle por parte daqueles que costumam dizer que "estas coisas não existem", e que dirão o mesmo até a extinção completa da espécie.

A mulher analisada pelo dr. Protti, em 1934, em Pirsano, tornava-se luminosa são efeito de estímulos religiosos. Protti observou a maior parte dos fenômenos descritos antes, como excitação da tireóide, palpitações, etc. Mas não sabemos praticamente nada dos "estímulos religiosos" empregados. Entre os casos históricos mais amplamente descritos está o do padre Francisco Suarez, autor de um tratado teológico sobre a Defesa da Fé, no qual, como precursor do pensamento moderno, preconizava uma espécie de separação entre a Igreja e o Estado.

Por sua vez, São Francisco de Paula, Santo Afonso de Ligori, Santa Catarina de Ricci, iluminavam a escuridão de suas celas, segundo o depoimento dos companheiros de convento. Os efeitos luminosos não são os únicos que fogem a qualquer interpretação, situando-se, portanto entre os fenômenos desconhecidos. Não são nem mesmo os mais notáveis. O jejum total, prolongado durante anos, e que foi observado freqüentemente entre os místicos modernos, merece um estudo à parte.

Mas neste caso saímos evidentemente do domínio fisiológico: o exame das realidades que se manifestam no ponto mais alto da experiência mística revela propriedades desconhecidas no universo material.

Por um processo que a ciência não explicou, nem tentou seriamente analisar, a paixão do amor divino transforma primeiro a biologia dos que são sujeitos a ela: a hipertermia reflexa, o metabolismo acelerado, o jejum suportado sem distúrbio particular. Em seguida, esta biologia excepcional dá origem a uma física totalmente insólita: há levitação, ou emissão de luz em condições inexplicáveis.

Trata-se de algo impossível ou absurdo? Mas o que significam, na verdade, estas palavras? Parece de fato aberrante que um corpo sólido, dotado de uma massa própria, possa sustentar-se "no`ar" sem apoio aparente, ou que um organismo vivo emita raios eletromagnéticos quando o cérebro realiza operações intelectuais de um tipo excepcional. Mas pensamos "que um fato aberrante, inexplicável pelas teorias reinantes, é mais benéfico para a ciência do que os desenvolvimentos que podemos dar a estas mesmas teorias, ainda que sejam controlados pela experiência" (Boletim do Centro de Documentação do Grande Oriente da França, N.° 40-41, pág. 27).

Acreditamos que, se um fato for observado, ele deixa de ser impossível e absurdo, e mais cedo ou mais tarde será interpretado cientificamente. Mas é preciso, evidentemente, que os cientistas se disponham a observá-lo. Aliás, se examinarmos as concomitâncias físicas da experiência mística à luz da história da ciência, vemos que elas se integram facilmente num esquema familiar a despeito de sua aparência absurda, ou até mesmo por causa dela. A evolução da matéria cósmica fez-se da partícula à química, da química à vida, da vida ao pensamento; nosso pensamento se desenvolve em nosso cérebro, que se desenvolveu a partir da química orgânica e mineral, que procede da física das partículas. O que significa isto senão que esta evolução das coisas, desde a partícula física até o pensamento, fez aparecer em cada etapa transposta certos fenômenos que o estado precedente não deixava suspeitar?

A vida faz certas coisas que a química não faz. E meu pensamento produz certos fenômenos que não têm equivalente na digestão, por exemplo, ou na respiração. Mesmo admitindo, como dizia Taine, que o cérebro secrete o pensamento, como o fígado secreta a bílis, é forçoso reconhecer que não conservamos o pensamento num tubo de ensaio. Se aceitarmos, portanto, o que necessita ser provado, que o pensamento místico está para o pensamento humano comum como este está para o pensamento animal superior, seria desesperar que o pensamento místico se manifestasse na ordem física por fatos tão surpreendentes quanto são nossas máquinas para o entendimento de um macaco.

Esta idéia e os termos da comparação podem revoltar nosso orgulho. Mas nem por isto é menos verdade que, se a evolução deve prosseguir além do homem, ela se fará no domínio do pensamento. Ela se traduzirá, portanto, por um organismo físico novo e por um novo tipo de domínio sobre as propriedades da matéria.

É assim que as coisas ocorreram até agora desde o nascimento da vida. Neste caso, não nos devemos surpreender com o fato de o pensamento místico manifestar-se precisamente por meio de certos fenômenos biológicos e físicos incompreensíveis. Não sei se o pensamento místico é o do homem de amanhã. Mas seus efeitos seriam os mesmos caso fosse.

Que seja ou não assim, é no pensamento do homem que repousa e germina este pensamento que nosso pensamento não pode mais atingir e que será sua própria transcendência. O absurdo não está no fato de que certos aspectos do misticismo desconcertem a razão. Está antes na recusa da razão em aceitar este além de si mesma que não pode deixar de gerar.

Fonte: Planeta 40, janeiro de 1976